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A primeira casa comercial de Santa Cruz

Esta postagem trata de um estabelecimento comercial que existiu na Povoação de Santa Cruz desde ao redor de 1861 até 1931. Esta firma é reconhecida como a primeira casa comercial de Santa Cruz, se desconsiderarmos os pequenos bares e botequins que existiam desde o estabelecimento da povoação (Martin, 1991).

A longo de seus 70 anos de existência, a casa comercial teve diferentes proprietários e mudou várias vezes de denominação, mas funcionou sempre no mesmo local, na frente da Praça da Matriz, onde hoje (2023) há uma agência da Caixa Econômica Federal.

A listagem dos proprietários é interessante, pois nos permite ver as relações entre os membros de uma pequena elite comercial que se formou em Santa Cruz já no início da Povoação. Para a maioria das pessoas mencionadas nesta postagem, existem links que apontam para meu banco de dados genealógico. Lá encontram-se dados vitais, fontes e informações adicionais.

A fonte principal para esta postagem é um artigo do Prof. Hardy Martin sobre o assunto (Martin, 1991). As demais fontes consultadas encontram-se na seção Fontes no final da postagem.

Kaufmann & Hasslocher

Segundo (Martin, 1991), lá pelos anos 1861 ou 1862, os sócios Kaufmann e Nicolau Hasslocher estabeleceram a primeira casa comercial de Santa Cruz. Eles já eram sócios de um estabelecimento análogo em Porto Alegre desde 1851.

Localização

A casa encontrava-se em uma localização privilegiada, em frente à praça da Igreja Matriz, a principal praça da cidade, na esquina das ruas Imperial (atual Júlio de Castilhos) e de Santa Cruz (atual Marechal Deodoro)

Na figura abaixo, o terreno em que ficava a casa está marcado em verde sobre o mapa da atualidade.

O primeiro mapa que temos da Povoação de Santa Cruz é de 1870 e nele pode igualmente ser observada a localização da casa comercial.

Terreno da casa comercial marcado no mapa de 1870 (Quadra D – Lote 10)

O sócio Nicolau Hasslocher

Nicolau Hasslocher (Nikolaus Hasslocher) nasceu em Worms, Hessen, ao redor de 1813. Ele veio ao Brasil como soldado na década de 1820, tendo servido no 28º Batalhão de Caçadores no Rio de Janeiro (Lemos, 2013).

Ele chegou em São Leopoldo em 9 de maio de 1829 e casou com Ernestine Wilhelmine Hedwig Klingelhoeffer, filha de Friedrich Christian Klingelhöffer, um dos primeiros pastores luteranos das colônias alemãs. O casamento deve ter ocorrido antes de 1836, ano do nascimento do primeiro filho do casal.

Aparentemente o casal viveu em Porto Alegre e em Rio Pardo, pois batizou filhos em ambas as cidades.

Além da sociedade com Kaufmann acima mencionada, Nicolau Hasslocher era sócio de Jacob Luchsinger em um estabelecimento comercial em Rio Pardo, conforme documentado por (Göller, 2014).

Este fato é confirmado por Hedwig Textor Trein, que escreve em suas memórias (Trein, 1937):

Em Rio Pardo, naquela época, só havia duas famílias alemãs: Nicolau Hasslocher e Luchsinger (nota: deve ser Jacob Luchsinger), que eram os proprietários de um armazém no assim chamado “Passo” …

A época referida neste comentário é início dos anos 1850, quando os Textor chegaram ao Brasil e tiveram uma passagem por Tio Pardo.

Ainda segundo pesquisas de (Göller, 2014), Hasslocher e Luchsinger estão entre os sócios fundadores do Deutscher Hilfsverein, a sociedade que deu origem à mantenedora do Colégio Farroupilha, o que bem reflete sua posição dentro da sociedade teuto-brasileira da época.

Comprovando a ligação de Nicolau Hasslocher com Santa Cruz, o seu filho Germano Hasslocher teve concedidos dois terrenos na Povoação de Santa Cruz, bem próximo de onde ficava a casa comercial de seu pai. A localização destes terrenos pode ser vista sobre o mapa atual neste link.

O sócio Kaufmann

Sobre Kaufmann, o sócio de Nicolau Hasslocher, não consegui maiores informações.

No Arquivo Publico do RS, está indexado um processo de 02/01/1872, no qual Hasslocher e Kaufmann são partes. O processo refere-se à Comarca de Porto Alegre, o que comprova a existência da sociedade na capital.

Segundo (Gans, 2004), houve um Adolfo Kaufmann, luterano, comerciante em Porto Alegre entre 1869 e 1889. Talvez seja esse o sócio de Nicolau Hasslocher.

Hasslocher & Hänsel

Alguns anos depois de estabelecida a sociedade entre Kaufmann e Nicolau Hasslocher, o primeiro se retira da sociedade, sendo substituído por Frederico Haensel ou Hänsel, (Friedrich Ludwig Heinrich Hänsel).

Não tenho a data exata da mudança da sociedade, mas em Porto Alegre, já em 1863, Hasslocher&Hänsel aparecem como sócios e autores do um processo judicial (ver processo indexado no Arquivo Público do RS).

Frederico Hänsel

Frederico Haensel era genro de Nicolau Hasslocher, casado com, Ernesta, uma filha deste (ver diagrama de relacionamento abaixo).

Frederico Hänsel foi um dos legionários (Brummers) contratados pelo Império para as lutas contra Rosas na Argentina (Lemos, 2015). Hänsel chegou ao Brasil em 1851 no navio Heinrich.

Não se sabe se e nem de que forma Hänsel tomou parte da Campanha contra Rosas. O que é certo é que ele rapidamente ascendeu na Sociedade Gaúcha, sendo sócio de estabelecimentos comerciais, de uma companhia de navegação que fazia viagens de Porto Alegre ao interior (a Companhia Fluvial, vide muitos avisos publicados no jornal A Federação), vice-cônsul da Prússia em Santa Cruz e Deputado Provincial no Rio Grande do Sul (Piassini, 2017).

Ele foi proprietário de um grande número de terrenos na Povoação de Santa Cruz, conforme mostrado neste mapa.

Quanto ao ingresso dele na sociedade com Hasslocher, é razoável supor que ele tenho tido alguma relação com o fato de Hänsel ser genro de Hasslocher.

Parentesco entre Nicolau Hasslocher e Frederico Hänsel

Felipe Heuser

Algum tempo depois de estabelecida a firma Hasslocher&Hänsel, a ela se junta, incialmente como empregado, o meu trisavô, Felipe Heuser (Martin, 1991).

Felipe Heuser (Philipp Heuser) nasceu em 12 de setembro de 1851, em Enkirch, uma vila nas margens do Rio Mosela, na então Prússia Renana (Rheinpreussen). Ele chegou ainda criança ao Brasil, em 1858, juntamente com seus pais e irmãos.

Em 29 de novembro de 1876, em Santa Cruz, Felipe Heuser casou com Eugenia Adolphina Bertha von Schwerin, que era conhecida pelo apelido de Jenny Schwerin. Através do casamento, Felipe Heuser ingressou em uma das famílias mais importantes em Santa Cruz na época. Deve ter sido uma ascensão social, já que Felipe vinha de uma família de poucas posses (eram fabricantes de cestos para vitivinicultura em Enkirch)

É interessante observar que as famílias Heuser e Textor foram vizinhas na Quadra 3 da então Povoação de Santa Cruz. Os Heuser eram proprietários dos terrenos nº 6 e nº 7 enquanto que os Textor possuíam os terrenos nº 4 e nº 5. Talvez esta vizinhança tenha sido uma das razões para a união entre Felipe Heuser e Eugênia Schwerin.

A família de Eugênia Schwerin

Parentesco entre as pessoas mencionadas abaixo

Carlos Schwerin (Carl von Schwerin), o pai de Eugenia Schwerin, sogro de Felipe Heuser, havia chegado ao cargo de Diretor da Colônia de Santa Cruz, mas faleceu prematuramente em 1870.

Já a mãe de Eugenia Schwerin, Clara Textor, pertencia a família Textor, tratada mais profundamente em outro artigo neste blog. O avô de Eugenia, Adolf Textor, chegou ao Brasil ao redor de 1850 e esteve estabelecido por algum tempo em Porto Alegre, onde administrou uma criação de ovelhas merino de propriedade do governo provincial. Ao final dos anos 1850 mudou-se com a família para Santa Cruz.

Um tio de Eugenia, Emílio Textor, era arquiteto (teria projetado o interior do Teatro São Pedro) e foi proprietário de uma serraria em Santa Cruz bem como de uma fábrica de móveis na região de Soledade, onde deixou vasta descendência.

Já a tia Hedwig Textor casou com Carlos Trein Filho, que de 1870 a 1878 foi o Diretor da Colônia de Santa Cruz. Conforme mencionado mais acima, nas memórias de Hedwig, encontramos a seguinte observação:

Em Rio Pardo, naquela época, só havia duas famílias alemãs: Nicolau Hasslocher e Luchsinger (nota: deve ser Jacob Luchsinger), que eram os proprietários de um armazém no assim chamado “Passo”. Hasslocher era o avô do Dr. Germano Hasslocher e de Ernesta Haensel, cujo marido, o deputado Frederico Haensel, foi assassinado no jardim de sua casa pelas costas, na rua da Figueira (Cidade Baixa) durante a revolução de 1889. As cantoras Amália Iracema Ferrari e Hedy Brugelmann eram suas filhas, assim como também a Senhora Bahlke. Ao longo dos anos, tivemos sempre uma amizade sincera. Os Luchsinger que ainda hoje vivem em Porto Alegre são descendentes deste casal de Rio Pardo. Estas duas famílias eram muito amigas de meus pais.

Dessa frase se conclui que os Textor tinham relações de amizade com Hänsel e Hasslocher que em diferentes épocas foram sócios da casa comercial em Santa Cruz. É razoável supor que o casamento de Felipe Heuser com Eugenia Schwerin tenha sido um dos motivos para o ingresso de Felipe como empregado na firma Hasslocher&Hänsel.

Felipe Heuser ingressa como sócio

Anos depois da contratação de Felipe Heuser como empregado da firma, o mesmo ingressou na sociedade com a saída de Hasslocher da mesma. Com isso, o estabelecimento comercial passou a denominar-se “Hänsel & Heuser“. (Martin, 1991)

Antes de fevereiro de 1891, Hänsel retira-se da sociedade, que passa a chamar-se “Felipe Heuser & Cia” e tem como sócios, além do próprio Felipe Heuser, Theodor Albrecht (Reinhold Theodor Friedrich Albrecht).

O edital mostrado abaixo foi publicado pela Junta Comercial de Porto Alegre no jornal “A Federação” em 23 de fevereiro de 1891. O edital informa que o contrato social da firma “Phil. Heuser & Cia” (Felipe Heuser & Cia.) foi arquivado na Junta.

Edital publicado pela Junta Comercial de Porto Alegre no jornal “A Federação”.

Quanto ao sócio Theodor Albrecht, sabe-se que ele nasceu a 3 de julho de 1865, na vila de Blochingen em Württemberg e casou em 26 de janeiro de 1892, em Santa Cruz, com Isabella Iserhard. Não consegui determinar a data de sua imigração, mas aparentemente ele veio só, sem a família de seus pais.

Theodor foi por diversas vezes padrinho de filhos de Felipe Heuser.

Entre 1897 e 1904 foi, por duas legislaturas, Conselheiro Municipal em Santa Cruz (Menezes, 2005).

Viúva Felipe Heuser

Em 1905, aos 55 anos, Felipe Heuser falece prematuramente e a firma passa a ser administrada pela viúva Eugênia Heuser sob a denominação “Viúva Felipe Heuser“.

Ela administrou o estabelecimento comercial por pelo menos dez anos, como comprova o anúncio da marca registrada da firma, publicado em 11 de julho de 1916:

Divulgação da marca registrada de “Viúva Felipe Heuser”

Heuser Irmãos & Cia.

Após 1916, e antes de 1919, os filhos Henrique Heuser e Alfredo Heuser passam a fazer parte da administração da casa comercial, que recebe a denominação de “Heuser Irmãos & Cia“.

Abaixo está a primeira referência à nova denominação que encontrei no jornal “A Federação” em abril de 1919:

Referência a “Heuser Irmãos & Cia.” no jornal “A federação” (1919)

A casa comercial continuava funcionando no mesmo local desde 1861 e sua fachada pode ser vista na fotografia abaixo:

Fachada de “Heuser Irmãos & Cia.”, na Rua Julio de Castilhos, esquina com Marechal Deodoro.

Segundo (Martin, 1991):

Esta firma foi, na época uma notável Casa Comercial em Santa Cruz. Chegou a participar, em 1893, da Exposição Internacional Columbiana, em Chicago, EE UU. A medalha em questão está exposição no Museu do Colégio Mauá. A Casa Comercial trabalhava com ferragens, louças, tintas, etc. banha, cordas, cereais, tecidos – inclusive com inúmeras costureiras em atividade. Foram representantes de Cias. Seguradoras, como Livonius, Nacional, Segurança Industrial, Phenix Sul – Americano, Achen & Munich, Indenizadora Manheim e International; foram agentes das Cias. de Navegação; Hamburg Südamerikanische Dampfschifffartgesellschaft; foram distribuidores de querosene, gasolina e óleos lubrificantes. Foram como se constata, realmente uma potência em Santa Cruz e região.

Em 1925, a firma providenciou o registro de sua marca, conforme a nota abaixo:

Pedido de registro de marca ( Diário Oficial da União de 20/08/1925)

Em 1931, provavelmente afetada pela Crise Mundial que atingiu muitos estabelecimentos semelhantes, a firma Heuser Irmãos & Cia entrou em dificuldades financeiras e teve que cerrar as portas. O anúncio abaixo foi publicado em 6 de junho de 1931 para comunicar a liquidação da firma:

Anúncio da liquidação da firma, publicado no jornal “A Federação” em junho de 1931

Fontes

  • (Martin, 1991) Hardy Elmiro Martin (organizado e atualizado por Olgário Paulo Vogt e Ana Carla Wünsch), Recortes do Passado de Santa Cruz, EDUNISC, 1999
    O livro contém uma coletânea de artigos curtos do Prof. Hardy Martin cobrindo vários aspectos do desenvolvimento da cidade. O artigo em questão parece estar baseado em uma notícia publicada em 9 de janeiro de 1931 pelo Jornal Kolonie
  • (Göller, 2014) Lisete Göller, A Genealogia de um Sobrado in: Memorial do Tempo – blog
    Blog da genealogista Lisete Göller – na postagem em questão ela relata a história de um sobrado em Rio Pardo.
  •  (Lemos, 2013) Juvencio Saldanha Lemos, Os Mercenários do Imperador (1824-1830), Porto Alegre, Letras&Vida, 2013.
  • (Lemos, 2015) Juvencio Saldanha Lemos, Brummers, Porto Alegre, Edigal, 2015
  • (Gans, 2004) Magda Roswita Gans, Presença Teuta em Porto Alegre no Século XIX, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004
  • (A Federação) A Federação – Orgam do Partido Republicano, Porto Alegre, RS
    Este jornal existiu de 1884 e 1937 e era o mais importante do Estado. Ele está indexado na Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.
  • (Trein, 1937) Hedwig Textor Trein, Lembranças de minha vida, Porto Alegre, 1937
    Este texto foi escrito por Hedwig Textor Trein, a irmã de Clara Textor von Schwerin, mencionada acima no texto. Hedwig tinha 90 anos de idade quando escreveu suas memórias, mas era dotada de uma memória excepcional, pois lembrou não só de fatos como também dos nomes de muitos personagem que aparecem em sua longa vida. O texto integral encontra-se em outra postagem.
  • (Piassini, 2017) Carlos Eduardo Piassini, Imigração Alemã e Política – os Deputados Provinciais Kosertitz, Kahledn, Haensel, Brüggen e Bratholomay, Porto Alegre, Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2017
    Livro resultante de uma tese de doutorado da UFSM e disponível na Biblioteca da Assembléia Legislativa.
  • (Menezes, 2005) João Bittencourt de Menezes, Município de Santa Cruz, Santa Cruz, do Sul, Edunisc, 2005